quinta-feira, 20 de maio de 2010

Notas sobre uma ocupação

Andrés Rodríguez Ibarra*

“Tinha eu quatorze anos de idade quando meu pai me chamou...perguntou-me se eu queria, estudar filosofia, medicina ou engenharia...”: era esse samba do Paulinho da Viola o que se ouvia, a certo momento, num pleno domingo no Hall de Entrada do Plenário da CLDF. O Flamengo acabava de se sagrar, na televisão de 30 e tantas polegadas que lá fôra colocada, campeão brasileiro de 2009; um pouco antes, no mesmo lugar, havia acontecido um show de rock. Dança, alegria, comemoração se misturavam e quem quisesse se manifestar, dizer o que estivesse a fim, tinha à disposição um microfone aberto.

E aberta também estava a porta que dá para a rua e por onde entravam os poucos brasilienses que atenderam ao chamado de uma vigília contra a corrupção, feito por esses que ora ocupavam as dependências da CLDF. Alguns casais chegavam com as suas crianças, certamente para lhes mostrar algo inusitado, digno de se ver. Mas a maioria, ao ver que não haveria vigília, só música e alegria, optava por voltar para casa. A vigília não deu certo, o povo que se esperava não apareceu, mas o mundo era, naquele instante, pura felicidade e descontração, ainda que uma ameaça de expulsão à força pairasse no ar e estivesse prevista para a manhã do dia seguinte, decorrente de um mandado de reintegração de posse a cargo da Presidência da Casa.

Essas são algumas cenas de um todo maior, que foi a ocupação do Plenário da CLDF pelo movimento Forra Arruda e Toda Máfia por seis intensos dias; e o samba do Paulinho eu o escolhi para iniciar este depoimento porque bem que eu poderia ter começado dizendo: “tinha eu 43 anos de idade, quando, da minha mesa de trabalho, ouvi, junto com minhas colegas... um estrondo de vidro quebrando...”. O movimento entrou numa tarde de terça, arrebentando uma porta de vidro, pondo a baixo um detector de metais, agredindo a um policial legislativo, mas só isso; não houve mais uso de força do que essa. Houve, sim, que eu vi, muito tambor ressoando, muita determinação e uma divisão paritária entre rapazes e moças, entre “ocupantes” e “ocupantas”.


Àquela altura, tinha-se já bastante exposição à profusão de maços de dinheiro entrando em bolsos, bolsas e meias, mas o que se discutia entre colegas e entre companheiros era se tudo isso seria suficiente para resultar em alguma punição. Tratava-se de mais um dos inúmeros casos de corrupção a que temos assistido na nossa política, ou seja, nada que saísse do “normal”, daquilo que todos já “sabíamos” sem o saber. Era, então, uma questão de torcer para que houvesse mesmo uma Pandora dentro daquela “caixa”, com suficiente força para que a nossa Justiça dissesse a que veio. Uma letargia, silenciosa e insuspeita, tomava conta da maioria de nós.

Acostumados que estamos ao dia-a-dia da CLDF, mal nos apercebemos que esse mundo do qual, bem ou mal, fazemos parte, esse universo da política distrital, possui algo que eu só poderia comparar a um cheiro—toda casa tem um cheiro, por que é que esta não teria? Acostumamo-nos aos rituais dos tapinhas nas costas, das “excelências”, dos ternos e dos sapatos reluzentes, que não são, de todo, diga-se de passagem, uma invenção local. Pois bem, ao longo da ocupação, eu ouvi uma repórter comentar com um interlocutor que não agüentava mais o “futum” da tribuna de imprensa, “futum” esse que, segundo ela, vinha dos ocupantes, que não tomavam banho.

O que eu tenho a dizer a esse respeito é que, tendo circulado entre essa garotada, jamais senti o referido fedor. Muito pelo contrário: me chamou a atenção não só o fato de que eles tomavam banho sim (nas suas casas), como o de que tinham toda uma preocupação com o asseio do lugar onde estavam. Não se borrifavam de perfume, tal como é corriqueiro que se sinta nos corredores da CLDF, mas o seu comportamento, a sua atitude, o seu proceder uns em relação aos outros, marcados pela coragem, generosidade, tolerância e disciplina, exalava, sim, um perfume, raro, que me faz pensar no fedor, ético, que nós, que trabalhamos neste poder, temos que, diariamente, suportar.


Se fosse dar um nome ao que ocorreu nesses seis dias de ocupação, eu daria o de sublevação. É uma escolha enviesada, já que se trata de um termo que um guru meu, Michel Foucault, nutriu com carinho, percebendo que há nela uma irredutibilidade:

“porque nenhum poder é capaz de torná-la absolutamente impossível: Varsóvia terá

sempre o seu gueto revoltado e os seus esgotos apinhados de insurgentes. E porque o

homem que se subleva é finalmente sem explicação: é necessário um dilaceramento que interrompe o fio da história e os seus longos encadeamentos de razões, para que um

homem possa, ‘realmente’, preferir o risco da morte à certeza de ter que obedecer.”


E acrescenta esse filósofo francês, a propósito dessa irredutibilidade, que

“ninguém tem o direito de dizer: ‘revolte-se por mim, disso depende a liberação final de todo homem’. Mas eu não estou de acordo com aquele que diria: ‘inútil sublevar-se,

sempre será a mesma coisa’. Não se faz a lei a quem arrisca a sua vida diante de um

poder. Tem-se ou não razão de se revoltar? Deixemos a questão em aberto. Subleva-se,

eis um fato; e eis por onde a subjetividade (não aquela dos grandes homens, mas aquela

de um João-Ninguém) se introduz na história e lhe dá seu alento. Um delinqüente joga a sua vida contra os castigos abusivos; um louco não agüenta mais ser enclausurado e

destituído; um povo recusa o regime que o oprime. Isso não torna inocente o primeiro,

não cura o segundo e não assegura ao terceiro os porvires prometidos. Ninguém, por

outro lado, é proibido de lhes ser solidário. Ninguém é proibido de achar que essas vozes confusas cantam melhor que as outras e dizem o fino substrato do verdadeiro. Basta que elas existam e que elas tenham contra si tudo isso que se obstina em fazê-las se calar, para que exista um sentido em escutá-las e em buscar o que elas querem dizer. Questão de moral? Pode ser. Questão de realidade, seguramente. Todos os desencantos da história nada conseguirão contra elas: é porque existem tais vozes que o tempo dos homens não tem a forma de uma evolução, mas a da ‘história’, justamente.”


Os integrantes do movimento Fora Arruda e Toda Máfia deixaram uma marca na história da política local. Saíram de cabeça erguida da CLDF, pela porta da frente, tendo negociado até o fim os termos da desocupação. No dia seguinte, incorporados ao movimento maior que ajudaram a fomentar, romperam a regra da sua estrita disciplina, invadiram a rua e apanharam, muitos, de uma Policia covarde. Hoje, estão, incólumes, pelas ruas da capital, a caminho, espero, de uma vitória final. O que foi afinal que eles ocuparam de mais importante? Eu diria que os corações de muitos de nós, mais velhos, que achávamos que sabíamos alguma coisa sobre a política. Então, por favor: ocupa, ocupa, ocupa e resiste!

* Consultor Técnico-Legislativo – Sociólogo da CLDF, Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e Diretor de Finanças eleito do Sindical (2010-2011).

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