segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A Dimensão Ontológica do Discurso na Filosofia de Foucault

A investigação de Foucault, que interessa na análise de crítica da sociedade ocidental, que se inscreve dentro da tradição genealógica, tematiza a relação equívoca e ambígua entre as formações discursivas e as práticas em geral, pretendendo restaurar a conexão entre o âmbito autônomo da vida com as instituições. Presta-se à análise do discurso, acontecimento supra-individual, enquanto formador das práticas institucionais e produto destas. As formações discursivas correspondem a dispersões epistêmicas de práticas de poder e o saber é uma articulação discursiva de poder, par que Foucault herda de Nietzsche.

Dentro da discussão em torno do estruturalismo Foucault defende uma concepção de linguagem que esgote a monarquia do significante. Apesar de não ser estruturalista, o privilégio que atribui ao descontínuo (contingente, ocasional, fortuito) o aproxima dessa corrente.

Na relação entre o discurso e o não discurso (instituições) se revela o conteúdo deletério da linguagem. O desenvolvimento das formações discursivas recorrendo a noções identitárias é algo de que Foucault pretende fugir sendo que a concepção do discurso em sua concretude foi rechaçada pelo ocidente a favor da monarquia do significante e a relação entre lingüístico e não lingüístico foi esquecida pela filosofia.

Observa-se em Foucault um anti-humanismo no sentido de humano utilizado pelas ciências sociais. O poder que se vale do conceito promove e produz individualidade muito mais que proíbe e veta possibilidades. O ser humano é produto da intersecção de saberes, sendo assim, a linguagem é produtora, não apenas veicular. O autor vê com maus olhos a não enfatização dos âmbitos convencionais (parole) e diacrônicos da língua. Ele resgata o aspecto esquecido pela lingüística estrutural (convencionalismo). O discurso em sua materialidade desenvolve dispositivos sociais de controle de sua produção e distribuição que visam dominar. A verdade como exclusão, já identificada por Nietzsche, se produz pela igualação do não-igual e exclusão das diferenças. A origem da vontade de verdade remonta à antiguidade, onde em O Sofista Platão elabora pela primeira vez o princípio da não-contradição. Ali a verdade se tornou um predicado do que é dito e não um acontecimento fatídico, concernente ao discurso, à dizibilidade. Estabeleceu-se uma relação interna entre verdade e dizibilidade. Nascia o preâmbulo de verdade como correspondência e, de modo, a monarquia do significante.

Foucault identifica três procedimentos de exclusão imanentes à pratica do discurso: a interdição, a separação e a vontade de verdade. A igualação entre essência e aparência no mesmo plano é promover a descrição dos fatos sem pretensão de verdade. Essa ação desmascara a vontade de verdade que sustenta as formações discursivas.


Pragmática Formal em Habermas como Crítica Materialista da Sociedade

Apesar de Habermas ser fortemente relacionado à escola de Frankfurt, sua orientação teórica se distancia consideravelmente do marxismo e neomarxismo encaminhando-se à intenção de levar adiante uma crítica social em que a teoria e a prática sigam sob uma forma de racionalidade capaz de aportar explicações e justificações (uma racionalidade onde a consciência da explicação seja, ao mesmo tempo, a justificação da explicação)[1]. No entanto, o que interessa agora diz respeito a seus desenvolvimentos dados à pragmática formal, que serviram à formulação de uma teoria do agir comunicativo e da racionalidade, o que se apresenta como fundamento de uma teoria crítica da sociedade e pressuposto de uma visão da moral, do direito e da democracia fundamentada na teoria do discurso. Para isso, o autor se obriga no desenrolar da questão ontológica do naturalismo atinente ao modo como é possível harmonizar a padronização do mundo da vida ao qual “sempre já” nos encontramos com a mutabilidade das formas de vida socioculturais; e na consideração do problema epistemológico do realismo, conduzido também numa tentativa de conciliar a visão de um mundo autônomo quanto a nossas considerações sobre ele, o mesmo para todos, com a convicção de que há a mediação lingüística no acesso a este mundo.

Apesar da substituição do viés mentalista para o semântico feita por Frege na análise de sensações e juízos, e da consolidação da virada lingüística de Wittgenstein, a teoria permanece tendo primazia sobre a práxis, da mesma forma que a representação sobre a comunicação. Porém, tentativas como a de Sanders Peirce introduziram novo elemento à antiga dualidade representação-objeto, modernamente articulada como proposição-fato. Há a necessidade do contexto ouvinte-falante no ato comunicativo. Ao mesmo tempo em que ocorre a referência da proposição ao mundo, há a referência à intersubjetividade dos interlocutores. Assim, se se admite o entendimento mútuo como finalidade do discurso, é mister aceitar a originalidade conjunta de representação, comunicação e ação. O proferimento lingüístico direciona-se simultaneamente ao mundo e ao destinatário, e a comunicação bem sucedida possui uma ligação interna com a representação de fatos.

Dummett defende essa tese, mas não deixa de seguir o movimento analítico majoritário, que corria primando pelos questionamentos teóricos, assim como o ramo hermenêutico da filosofia da linguagem, a despeito de sua tendência a se interessar mais pelo intercâmbio comunicativo que pela função representativa da linguagem. Na mesma linha, Frege e Russell reduziram a análise da linguagem a uma semântica da proposição, apenas.

A pragmática formal é desenvolvimento da busca de uma teoria sociológica da ação, cuja responsabilidade se atrelava à explicação das forças de determinação socialmente integradoras, intrínsecas ao agir discursivo, que abrem espaços de crítica da validade do discurso na escolha racional de pontos de vista. Nessa procura, a investigação da função representativa pela pragmática, se mostra restrita, mas em relação às teorias da significação de Frege, ela possui maior amplitude, pois horizontaliza todas as funções e enfatiza a participação crítica das segundas pessoas. Tal é o percurso que chega à pragmática formal, partindo da hermenêutica.

A tão discutida virada lingüística processou-se por duas vias, uma hermenêutica, outra analítica, sendo as duas mais complementares que concorrentes, e a pragmática formal reproduz a incorporação de elementos analíticos em elaborações crítico-hermenêuticas. É curioso notar como os dois percursos conduzem à primazia do a priori do sentido sobre os fatos. Nesse pano de fundo, as contribuições de Humboldt com sua teoria lingüística são centrais para se chegar aos relacionamentos de uma teoria com outra. Ele reconhece três funções da linguagem: cognitiva, expressiva e comunicativa e a relação entre elas é gerenciada privilegiando ora o âmbito lingüístico do mundo, ora a face conversacional da linguagem, respectivamente, pelas análises semântica e pragmática. A hermenêutica convive com o conflito permanente entre o particularismo da abertura lingüística ao mundo e o universalismo da práxis conversacional. Segundo Humboldt, o mundo da vida linguisticamente estruturado é o contexto da vida cotidiana, e revela o momento de encontro entre teoria social e teoria lingüística. No entanto, tanto Frege quanto Heidegger negligenciaram os elementos de uma pragmática formal já encontrados em Humboldt, limitando-se por um lado à relação elementarista entre proposição e fato, e por outro, à visão holística de constituição categorial do mundo encontrada numa língua natural, que mesmo assim lida com o contexto comunicativo como realidade secundária, não originária.

Porém, Humboldt constrói um modelo explicativo que analisa o aspecto criador de mundo da linguagem, a constituição pragmática da fala e do entendimento intersubjetivo, e a representação de fatos, os três se constituindo em níveis diferentes de abordagens lingüísticas. Por esse movimento, Habermas tenta elaborar um caminho que leve em consideração os três níveis de análise e evite o transcendentalismo tanto quanto as reduções. Assim, conecta o sentido de uma proposição às condições pelas quais é verdadeira, acompanhando Frege e Wittgenstein. Um efeito disso é a primazia da proposição sobre a palavra ou do juízo sobre o conceito, tema dissecado por Frege a partir do “princípio da composição”, segundo o qual o significado de uma expressão é dado pelos de seus constituintes, as palavras. Outra conseqüência se encontra na rejeição da noção tradicional de que os símbolos lingüísticos são fundamentalmente nomes de objetos. A possibilidade de se fazer vários enunciados sobre o mesmo objeto, enunciados até contraditórios, é dada pela diferenciação entre sentido e referência, que, se não distinguidos, levam à incapacidade de reconhecimento das várias descrições como referentes ao mesmo objeto; insuficiência que interromperia o acréscimo de conhecimento e de aberturas lingüísticas de mundo.

É Wittgenstein quem estabelece as extensões do mundo como os limites da linguagem, as proposições revelam os alicerces do mundo. Em oposição às categorias kantianas, a essência da proposição constitui a essência do mundo. Reviravolta que substitui os paradigmas da filosofia da consciência.

Heidegger promove, num esforço que combina a fenomenologia de Husserl com a hermenêutica de Dilthey, uma importante colocação do âmbito hermenêutico como primordial. Concentra-se na articulação lingüística da compreensão prévia do mundo sob as antecipações cotidianas, momento em que se delineia a possibilidade de que algo se apresente a nós. Por esse meio, torna a predicação posterior à compreensão, pois só ao que nos já é acessível num mundo aberto pela linguagem é possível predicar. Isso se reflete na sua concepção de verdade, que passa a ser equivalente às formas de abertura ao mundo. Ela não é mais única, e a abertura lingüística é quem estabelece as condições dessas verdades, porquanto em seu acontecimento, a abertura é indiferente às valorações.

A abordagem da pragmática formal estabelece um conceito de linguagem sobre a noção de entendimento mútuo pretendido no discurso intersubjetivo. As aspirações de validade dividem-se em duas faces: exigimos verdade para proposições sobre eventos no mundo, e correção para aquelas atinentes a expectativas e relações intersubjetivas, que são do âmbito de um mundo social atingível somente por uma ação performativa. A função cognitiva se sobressai à função de abertura ao mundo no aspecto dos processos sociomorais de aprendizado e no âmbito do controle sobre a realidade exterior. Por isso, uma teoria do agir comunicativo que se fundamenta nessa visão de linguagem pode ser atrelada a uma teoria materialista da sociedade, que leve em conta o sentido independente de processos de aprendizagem intramundanos, e dessa forma, permita uma aproximação mais qualificada da modernização social.

A filosofia analítica de todo o século XX passou de largo da crítica social, por relegar a segundo plano questões de ordem temporal. Do lado hermenêutico, no entanto, após a virada a desconstrução do cartesianismo e o embate com Nietzsche impulsionam a crítica à ciência, à técnica e ao totalitarismo vigente.Nesse ponto, Heidegger trabalha em temas já perseguidos por Weber e Lukács por um viés crítico, mas distinto. Ele apresenta com a crítica da metafísica a face idealista para a crítica materialista da reificação.

David Almeida



[1]José Ferrater Mora. Diccionario de Filosofía. Pág. 1541, verbete Habermas.

domingo, 23 de outubro de 2011

A Força


Se as circunstâncias da vida me faz descer até o mais profundo
abismo de minha alma, e se nesta profundeza, por algum
momento ou motivo não encontrar consolo para o meu coração,
e se as lágrimas não forem o bastante para me sentir renovado, e
se as luzes do futuro se converterem em trevas e desilusão, o que farei?
com minhas mãos cavarei mais profundo ainda do que a própria sorte
conseguiu, por um momento me deleitarei com o desfortúnio...
Mas na certeza que quanto mais fundo um homem descer,
quanto mais baixo a vida lhe jogar, mais elevado será
a altura que ele atingirá, porque também
foi assim com grandes homens...

Dalton Rocha

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Sim


Não é importante em quantos pedaços fizeram seu coração...
O importante é como e com que sentimentos você ira reconstruí-lo...
Existem pessoas que o vento deve levar, assim como leva as folhas secas,
as pessoas podem ser passageiras, ou não, e saiba que só as importantes
permaneceram porque aquilo que é verdadeiro nunca se acaba,
e se está próximo de se findar sempre se renovará...


Dalton Rocha

terça-feira, 6 de setembro de 2011


Em algum momento da vida
você encontrá uma pessoa que irá olhar
em seus olhos, e sem receio algum lhe
dirá verdades sobre ti, verdades que
nenhuma outra pessoa que conviva a
bastante tempo teria coragem de lhe dizer...
Assim descobrirá que a verdade que formava sobre si
não era tão perfeita como parecia ser...
E que a perfeição que imaginava sobre si só fazia com que
você mesmo se sentisse melhor...

Dalton Rocha

domingo, 14 de agosto de 2011




A onde estás? Por onde se perdeu?
Por onde andas pelas manhãs?
Nas noite frias e escuras onde se abriga?
Melhor assim, que tu se vá com o vento...
Que não bombei devaneios em meu cérebro...
Dalton Rocha

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A Solução Naturalista de Hume para o Problema da Conexão Causal

Hume é muito conhecido por ser o autor que despertou a Kant de seu “sonho dogmático” . Tem sido considerado como um crítico do conhecimento, e sobretudo das noções de substância e causa. Desse ponto de vista, é visto como sucessor de Berkeley e de Locke e como aquele que levou ao extremo o empirismo inglês. Sua contribuição na Filosofia Moral é também de grande relevo, mas o ponto que será aqui discorrido se refere à sua crítica do princípio da causalidade.
É sabido que a tradição racionalista defendida dentre outros por Descartes e Leibniz possuía como pilar a noção de causalidade sem a qual nenhuma possibilidade de conhecimento necessário seria possível. Para estes autores o universo se comportava respeitando sempre a dualidade condicionante-condicionado, de forma que qualquer fenômeno possível seria um efeito de uma causa precedente.
A justificação da causalidade se construiu sobre três teorias principais: o ocasionalismo, o influxo físico e a harmonia pré-estabelecida. Todas estas, desdobramentos metafísicos da tentativa de fundamentação da relação que associava, por esta visão, a causa ao efeito. Intentou-se, dessa forma, elucidar metafisicamente o mecanismo intermediário responsável pela ação de um sobre outro. É aqui que Hume se insere revelando uma nova solução, desta vez, naturalista ao problema da causalidade.
Na sua obra Investigação Acerca do Entendimento Humano Hume inicia a partir da Seção II do livro seu discurso sobre o tema partindo da especulação sobre a origem das ideias. Aqui, faz uma distinção fundamental para o que se segue, distingue dois tipos de percepção (entendida por ele como a totalidade dos fatos mentais) de acordo com a vivacidade de cada uma: as menos fortes são as ideias ou pensamentos; as mais intensas são as impressões, que se manifestam quando amamos, odiamos ou desejamos. Dessa forma, as ideias são imagens fracas das impressões correspondentes, das quais são uma cópia.
Tais ideias são associadas umas às outras por três princípios, segundo Hume: de semelhança, contigüidade e causalidade:
Um quadro conduz naturalmente nossos pensamentos para o original [semelhança]; quando se menciona um apartamento de um edifício, naturalmente se introduz uma investigação ou uma conversa acerca dos outros [contigüidade]. E se pensamos acerca de um ferimento, quase não podemos furtar-nos a refletir sobre a dor que o acompanha [causalidade] .
E cada ideia é concatenada em um dos princípios de forma a alcançar um objetivo eficaz; não se pensa sem um propósito em vista. Assim, a unidade é uma característica essencial da associação de idéias. Isso é bastante claro numa comédia, tragédia, peça de teatro ou na narração histórica. Ademais, os objetos da razão pertencem a duas categorias de relações: as de ideias e de fatos. As primeiras são exploradas pela geometria, aritmética e álgebra, pois as tais ciências quantitativas são capazes de garantir um alto grau de certeza mesmo em raciocínios complexos. Os fatos, no que se refere à possibilidade de conhecimento, abrem espaço a seu contrário, e a certeza de sua veracidade é sempre inferior à certeza que se tem na relação entre ideias. A garantia de certeza na defrontação com os fatos, que não estão no alcance do registro da memória ou no escopo do testemunho atual dos sentidos “parecem fundar-se na relação de causa e efeito” . Os dados atuais dos sentidos e da memória somente podem ser ultrapassados através dessa relação. Os raciocínios sobre os fatos são construídos com outros fatos, que imprimem causalidade ao raciocínio, pois sempre se supõe que um fato precedente se comporta como causa do posterior. Mas, como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito?
O autor diz que o conhecimento desta relação não provém de um raciocínio a priori, “porém, nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão constantemente conjuntados entre si” . Caso uma pessoa totalmente desprovida de experiência, mas dotada de suficiente discernimento fosse colocada frente a um objeto qualquer, este não seria de modo algum inferido por esta pessoa como resultante de tal ou qual causa, pois nenhum objeto revela, segundo o que aparece aos sentidos, as causas que o produziram, nem tampouco os efeitos que advém a partir dele. Muito menos é a razão capaz de, desamparada pela experiência, inferir qualquer relação. As causas e os efeitos não são descobertos por ela, mas pela experiência. O espírito não pode fazer nada, senão uma criação arbitrária dos supostos efeitos que um objeto desencadearia se estiver alheio à experiência. “Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto dela.” Qualquer juízo a priori que se poste numa tentativa de descobrir qual efeito é mais plausível que um outro, renunciando obviamente para isto a experiência, não pode encontrar nenhuma razão para a solução escolhida. Resumindo nas palavras do autor: “todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori” . E, mesmo a ligação do efeito à causa não se situaria além do arbitrário, pois uma razão é tão aceitável quanto qualquer outra.
Esse ponto é crucial para a conclusão do raciocínio de Hume. É aqui onde percebemos que os segredos de justificação últimos para nossas inferências sobre os objetos nos são “escondidos” pela natureza, e o maior esforço que se faça apenas revela que as experiências passadas presenciadas pelos sentidos e guardadas na memória só nos fazem sentido porque fazemos analogias e presumimos que a causa acontecida antes naquelas condições voltará a produzir os mesmos efeitos novamente. A vivência passada é capaz de oferecer apenas uma informação direta e segura acerca dos objetos aos quais teve acesso num período determinado e findo. Surge então uma questão fulcral: Por que essa experiência deve ser ampliada para o futuro e recair sobre novos objetos, mesmo que semelhantes em aspecto? Se experimento um objeto que é seguido de tal efeito, não revela-se daí que outros objetos àquele semelhantes produzirão o mesmo efeito. Requer-se descobrir o “termo médio” que autorize a passagem à inferência.
Lembrando que estamos lidando com questões de fato e de existência real, é preciso encontrar o processo do entendimento que responda pelo procurado. Mas, como já foi explorado e discorrido, as questões de fato se fundamentam na experiência, portanto não podem aceitar outra justificação que não relacionada a ela. E, se é à experiência que vamos recorrer, é mister ponderar por que nas nossas conclusões ela é sempre manejada em conjunto; ou, por que o resultado de uma experiência apenas é diverso daquele encontrado em várias experiências, mesmo idênticas. E ainda, em que se justifica a inferência de conexão entre as “qualidades sensíveis de um objeto e seus poderes ocultos” . Não há nada que impeça que o curso da natureza simplesmente mude e os efeitos antes produzidos por tais qualidades sensíveis já não sejam mais os mesmos, ainda que essas qualidades permaneçam como outrora.
Chegamos então ao corolário da investigação. O único princípio que assegura legitimidade à inferência é “o hábito e não a razão que nos determina a fazer [da experiência] a norma de nossos juízos futuros” . Sempre que um ato ou uma operação é produzida sem o auxílio de nenhum raciocínio, e sendo esta operação efetuada concomitantemente com a criação de uma propensão a se repetir, dizemos que ela é resultado do costume. O costume é o último princípio do qual sabemos, que responde pelas nossas conclusões retiradas da experiência. O aparecimento de um efeito, ou a conjunção entre causa e efeito é gerada pelo hábito. Somente assim podemos explicar por que é necessário um número grande de casos de uma mesma experiência para se chegar à inferência causal, quando aquele mesmo caso visto apenas uma vez não permite a conjunção. A razão é incapaz de fazer uma tal variação quantitativa, as mesmas conclusões que pode abstrair de um círculo são as que extrairá de mil círculos como o primeiro.
Dessa forma, é o hábito quem possibilita o uso da experiência enquanto material útil à vida e ele estabelece as condições para a expectativa quanto ao futuro. A sua ausência acarretaria a perda de todo material distante da memória e dos sentidos, a incapacidade de fazer projetos. “Seria, ao mesmo tempo, o fim de toda ação como também de quase toda especulação” .
Assim Hume estabelece uma nova e original solução naturalista ao problema da inferência causal.

David Wilkerson

A Harmonia Pré-Estabelecida e o Inatismo em Leibniz

O problema a que Leibniz se dedica nos Novos Ensaios, apoiado sobre a obra de Locke com o mesmo título, diz respeito à tentativa de encontrar o caminho que possibilite a afirmação do inatismo, entendido por este autor como a impressão de “princípios de várias noções e doutrinas” (pág. 8, prefácio), feita por Deus, inerentes a alma humana e pertencentes a qualquer um, mesmo que impercebidos, sob a forma de hábitos e aptidões (Novos Ensaios, Livro I, § 26), noções que, obrigatoriamente, são verdadeiras. Tal projeto é levado a termo sobre uma elaborada construção metafísica desenvolvida por toda sua obra que fundamenta as pretenções de inatismo: a doutrina das mônadas ou monadologia.
Leibniz acompanha uma tendência de sua época que possuía precedentes desde Pitágoras, quem falou primeiramente de uma πρώτη μονάς (primeira unidade, mônada). Lá, a mônada era entendida como “a unidade fundamental e última da qual se derivam os números” . Já em começos da Idade Moderna, o conceito de mônada adquire um sentido filosófico central no pensamento de autores como Henry More, Giordano Bruno e Nicolás de Cusa, segundo o qual “tudo está em tudo”, conforme atribuía este princípio a Anaxágoras. Porém, foi apenas Leibniz (1646-1716) quem desenvolveu uma completa metafísica monadológica. Seu projeto aglutinou tendências históricas num esforço de integrar o mecanicismo cartesiano com o que se chama “panespiritualismo”.
Dali tentaria, auxiliado pelo conceito de mônada, fazer convergir a ideia de individualidade à de continuidade e assinalar que “nada pode haver de real na Natureza senão as substâncias simples e os agregados que resultam delas” . Os compostos, ou corpos, são pluralidades, e as substâncias - vidas, almas e espíritos - são unidades. “A Mônada... não é senão uma substância simples, que entra nos compostos. Simples, quer dizer, sem partes” (Teodicéia, § 10). A ausência de partes pede necessariamente a inexistência de extensão, figura ou divisibilidade, bem como, de nascimento ou extinção. As mônadas são os “átomos” da natureza, as quais perdurarão tanto quanto o universo, que se transforma, mas não é destruído. As mônadas são individuais e distintas entre si e por, naturalmente, apresentarem mudança (que é sempre contínua), visto que todo ser criado está sujeito à mudança, esta é fruto de um princípio interno das mônadas, pois uma causa externa não é capaz de afetar seu interior. Além disso, é exigido que na mudança continue a haver algo que se mantenha inalterado para que a multiplicidade dos vários estados graduais seja percebida enquanto tal, assim a unidade é encontrada no múltiplo das mudanças ocorrentes em uma mônada, “alguma coisa sempre muda e outra sempre permanece” (Monadologia, § 13). É a esse estado transitório de multiplicidade na unidade que se denomina Percepção,e a atividade do princípio interno responsável pela mudança de uma a outra percepção se chama Apercepção ou consciência de percepção. Às mônadas que são apenas substâncias simples, Leibniz também as denomina de Enteléquias; àquelas que são acompanhadas por memória e sentimento, chama-as de Almas. A totalidade das mônadas constitui uma hierarquia de seres que ascende das representações mais obscuras e inconscientes às mais claras e distintas, indo até a mônada suprema: Deus. Elas não interagem mutuamente como os corpos físicos, mas cada uma é reflexo do conjunto.
E a lei que rege a interdependência das mônadas tem seu lugar na doutrina da Harmonia Pré-Estabelecida. Aqui Leibniz a coloca em relevo frente a duas outras teorias da causalidade: o influxo físico e o ocasionalismo. A primeira diz haver um influxo (a ação exercida por algo incorpóreo sobre o corpóreo) entre causa e efeito. A vibração de uma corda de violão, por exemplo, é explicado dessa forma como uma transferência do movimento dos dedos do violonista às cordas de seu instrumento.
O ocasionalismo substitui o conceito de causa pelo de ocasião. Considera que cada vez que se produz um movimento na alma Deus intervém para produzir um movimento correspondente no corpo e vice-versa. No exemplo dado das cordas, é Deus quem provoca sua vibração. Não há causalidade intersubstancial nem intrasubstancial.
Como o ocasionalismo, a teoria da harmonia pré-estabelecida defende que não há conexão causal intersubstancial entre substâncias finitas. A causa real da vibração das cordas do violão não é nem a mônada suprema: Deus, nem os dedos do tocador, mas a harmonia entre mente e corpo, que não se configura como uma relação causal direta.
A harmonia é a correta proporção, a unidade na multiplicidade ou a diversidade contrabalançada pela identidade. Deus é princípio de beleza e harmonia das coisas. Portanto, a harmonia é objeto natural de amor. Nessa teoria da concomitância ou hipótese dos acordos, todas as coisas e acontecimentos do cosmos conspiram em uníssono para o mais belo. Como diz Leibniz:
E assim como uma mesma cidade, observada de diferentes lados, parece outra e se multiplica em perspectivas, assim também ocorre que, pela quantidade infinita de substâncias simples, parece haver outros tantos universos diferentes, os quais não são, todavia, senão perspectivas de um só, segundo os diferentes pontos de vista de cada Mônada.
A harmonia pregada por Leibniz tem quatro elementos principais: “(1) nenhuma mudança nos estados de uma substância criada é devido a uma outra substância criada (isto é, não há causalidade intersubstancial), (2) todos as mudanças nos estados de uma substância criada é devido a essa substância em si (ou seja, há causalidade intrasubstancial), (3) cada substância criada tem um "projeto" (isto é, um conceito completo ou lei de série) que lista todos os estados, e (4) cada "projeto" está em conformidade com os planos de todas as outras substâncias criadas (ou seja, cada um dos estados naturais de uma substância criada é coerente com todos os estados naturais de cada substância criada)” .
Chegamos, então, num ponto culminante da construção do inatismo leibniziano. A constituição do universo monadológico fruto das inumeráveis e distintas substâncias simples que carregam consigo desde sempre as leis ou projetos a si inerentes e que definem suas relações com todo o conjunto formador dos corpos compostos, a rigorosa e inescapável interdependência entre cada mônada, isto constitui a harmoniosa ordem e conjunto de pré-requisitos que fundamentam a pretensão de repetição dos fenômenos (a lei da continuidade) sob as mesmas circunstâncias, e conseqüente possibilidade de estabelecimento de padrões ou leis necessárias, ou em outros termos, a harmonia existente nas relações entre as mônadas – determinada pela mônada suprema - é a garantia de que há idéias, verdades manifestas como “inclinações, disposições, hábitos e virtualidades naturais” inatas no ser humano, pois sendo este construto monadológico, corpo produto das mônadas, está ele também sujeito às regras que regem as substâncias, e, sendo este o melhor dos mundos possíveis, o universo é tal que podemos encontrar nele a verdade, já que está pré-configurado ao nosso entendimento .
Assim, o que se possa encontrar de independente dos sentidos em cada alma humana originando-se na reflexão, que se exerce através da atenção concentrada, visto que somente pela atenção se alcança as noções inatas, já que as distrações do cotidiano são inumeráveis; o que é independente, mostra-se ser proveniente dos princípios inatos, na medida em que os elementos a priori do conhecimento, apesar de não prescindir dos sentidos, são dele independentes.

David Wilkerson

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Meu Mundo


Por estes tempos por minha decisão caminho com a solidão,
não que esteja isolado, é que em minha moradia estou só.
Sinto um enorme frio, sim na região Centro Oeste venta que
treme os lábios e os ossos, estou bem agasalhado, mas ainda sim
sinto frio, pois não me refiro unicamente ao clima de minha terra, quando arudiado de pessoas me vejo distante, como se vivesse em um mundo desconhecido, que o criado por mim seja diferente. Seria loucura tentar salvar o mundo com sentimentos de bondade, ele está cheio de pessoas, cheio de contradições...
Mas que meu mundo seja salvo por mim, herói sim, mas de minha própria existência. Só desejo não concerta meus erros com outros, que não seja a solução mais fácil.
Que eu não procure o caminho da mentira para fugir de minhas verdades, e que meu mundo seja diferente, que eu me sinta bem em viver nele.





Dalton Rocha

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

DIALÉTICA DAS CONSCIÊNCIAS COMO

CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE EM VICENTE DA SILVA

INTRODUÇÃO

A herança da atitude e doutrina naturalista mostrou-se robusta apenas entre os séculos XVIII a inícios do século XX, apesar de já ser possível falar de naturalismo com Aristóteles, nos estóicos e atomistas. No entanto, a acepção não demasiado aberta à qual o presente texto se debruça situa-se dentro do período acima referido por corresponder à fase histórica em que mais autores trabalharam com um conceito suficientemente preciso de naturalismo de forma que assim se evite generalizações irresponsáveis na inclusão de numerosas correntes dentro do escopo de um único vocábulo.

De maneira semelhante, o texto se ocupará da dialética formulada pelo idealismo romântico do século XIX, que a entendia como “síntese dos opostos por meio de determinação recíproca” conforme Fichte apresenta em Doutrina da Ciência de 1794.

Partindo dessas acepções e tendo-as apenas como ponto de partida, Vicente elabora a sua dialética intersubjetiva ou das consciências numa tentativa de abandonar a dominância da physis como realidade determinante e superior a qualquer realidade histórica ou humana.

Vicente parte da distinção fundamental já intuída por Batista Vico (Dialética das Consciências, pag. 168) entre realidade social humana e o pensamento intelectualístico-naturalista. A ação e o drama humanos são a ordem de realidades que os envolve de maneira mais próxima. Concordando com Dilthey, afirma serem os conceitos científicos derivados enquanto a experiência e o vivido detêm a originariedade que busca. O ponto a ser explorado encontra-se na inversão responsável pela permuta de posições que relega o natural a segundo plano em benefício do histórico. A reflexão sobre a conexão e vínculo entre eu e tu ultrapassam os níveis social e espacial, chegando ao nível ontológico. Dessa forma “a presença do outro em nossa consciência e de nossa presença na consciência do outro não é algo de incidental ou periférico, mas uma dimensão essencial da condição humana”. A dialética do eu e do tu é uma estrutura humana e também fator de criação da própria realidade humana.


O combate dos vários “eus” na dinâmica da relação das consciências constitui a “substância original do mundo”. A fricção com o mundo natural é apenas intermédio da dialética intersubjetiva.

Na tentativa de conciliar as várias dialéticas existentes, o autor propõe o trilho contextual responsável pelo aparecimento da aguda percepção em questão e do sentido de fenômeno intersujetivo. Do interesse pelo objeto passa-se à dedicação pelas objetivações humanas. Num ambiente de anseios, empreitadas, litígios e liberdade como é o humano, a interligação das consciências é assunto proeminente. Assim o pensamento do ser externo voltou-se à “interioridade humana” para revelar aí seus movimentos, de forma que tal incursão foi acompanhada por uma virada lógico-epistemológica em que a apreensão ôntica é claramente distinguida do conhecimento existencial ou pático, que transcende o simplesmente dado e instaura fenômenos singulares como o encontro, somente possível em existências páticas.

Novas categorias são necessárias à superação da “grosseira ótica do pensamento científico-natural”, segundo Vicente. Noções de ritmo, crescimento, declínio, crise, etc. entram em cena para reformular “formas explicativas”¹ do pensamento naturalista e dar a eles “sentido compreensivo e hermenêutico”² nas investigações humanas.

Diante da posição primária que veio ocupar a análise da ação humana, os pressupostos que a moldavam adquiriram prioridade de atenção tornando a estrutura do comportamento humano tema de elevado realce como potencial metafísico humano. O ser se conservaria como permanente manutenção e volta de uma única ação. A verdade estaria segundo afirma Vico, no processo de produção das coisas e não nelas mesmas. Assim, a realidade objetiva se subordinaria ao fazer produtivo anterior. O processo ganha relevo enquanto a “forma” final é vista sob o ângulo do não acabado, do em curso e em andamento. Naturalismo e realismo perderam o antigo vigor que sustentavam na ênfase do segundo elemento da dualidade pessoa-coisa para se inverter na doação humana de realidade ao mundo, ou como diz o autor “em lugar do homem estar interpolado num mundo independente do seu modo de ser seria o mundo que receberia do homem o seu ser” (Dialética das Consciências, pag. 171).

O cuidado em evitar transpor o substancialismo à estrutura da vida espiritual possibilitou o amplo reconhecimento das relações intersubjetivas. Os participantes do diálogo das consciências não preexistem anteriormente ao diálogo, mas vão se formando no transcorrer da relação dialógica. Portanto, o humano mostra-se relacional sempre referente a um outro que

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¹ Os termos em aspas são de Dilthey.

² Idem.

pode se apresentar amistoso ou hostil, de acordo com a linha existencialista que se assuma. A relação eu e tu ultrapassa o nível de caracterização do humano, ela é responsável mesma pelo ser do humano que se faz enquanto relação com o outro. O ser humano pensado assim é a antítese do ser absoluto de Aristóteles que está a sós consigo mesmo, sem qualquer atualizações a realizar ou mudança a operar em si por bastar-se a si mesmo em sua totalidade. O humano não tem consciência das inúmeras possibilidades que lhe reservam as relações, caso contrário seria preexistente ao contato, não feitura de si mesmo na atividade que molda as várias partes envolvidas no contato. É antológica a noção de ser-com-o-outro enquanto cada outro é mediação na construção de si mesmo.

O recolhimento não é mais originário que o existir em comum. Mesmo no recolher-se se está lidando com o ser-com. A solidão não exclui o outro da estrutura do eu, nem tampouco o eu está ligado inescapavelmente a um outro particular.

O autor prossegue expondo a oposição que levanta contra o argumento hegeliano de inevitabilidade do “desenvolvimento atribuído ao curso do espírito em seu regresso a si mesmo”. Opõe-se ao determinismo na relação senhor e escravo. O âmbito particular da relação eu e tu apresenta a faceta objetivante do olhar de um sobre o outro. Eu me encontro escravo do outro enquanto ele me define em sua projeção de quem sou, perdendo o ser que sou transcendente e impermanente, não abarcável ou conceituável. O desencaixe primordial entre o que sou para o outro e o que sou em mim mesmo é condição sine qua non para que me diferencie dos objetos e coisas inanimadas. A contínua insatisfação com meu próprio desempenho reflete a dinâmica da constituição do eu, e nesse processo, a imagem que é feita de mim para o outro não é de todo independente de meu controle. Estou deveras envolvido nela. Interferindo na construção que de mim se faz na consciência do outro, estou transportando minha liberdade para além da relação e chegando até a subjetividade do outro.

No universo ôntico impera o que está aí dado, enquanto nas subjetividades a aparição do provável, inesperado e novo é a lei áurea. Os conflitos e tensões das consciências entre si e com o mundo revelam que elas não são representações estáticas. O eu encara outra consciência como ação livre frente ao subjetivo também dinâmico, mas a inclinação original é objetivar o ser do outro reciprocamente enquanto se tenta suplantar a reificação transcendendo através das ações o ser dado e, antiteticamente, busca-se identidade entre o eu transcendente e o eu reificado numa síntese que estabeleça o controle almejado. No entanto, o alcançar da plena liberdade traria consigo o peso da completa solidão porquanto somente na ausência do outro se encontra a falta de oposição e restrição. Dentro dessa análise, a dominação revela-se como desconstrução da subjetividade à qual se dirige e sem a qual não é possível se instaurar, visto que, voltando-se a um objeto ou ao que se tornou objeto após sua atuação, desconfigura a relação tornando-a unilateral, extraindo dela o que houvesse de dinâmico e existencial. A dominação, de maneira paradoxal deixa de existir no exato momento em que pretende dominar tornando-se apenas manipulação instrumental em que o prazer desejado é subtraído pela degeneração promovida no outro. A concentração de poder exige consigo ineludivelmente a supressão dos espíritos pretensamente dominados em prejuízo da “autêntica convivência”, nos termos de Vicente (pag. 177). Porém, a relação intersubjetiva não prescinde do recolhimento, ao contrário exige-o para a preparação de um contato mais visceral e profundo.

O silêncio resguarda aos espíritos habilitados a intensidade vital não percebida no frenesi cotidiano. Entretanto, há uma forma de solidão que rompe qualquer possibilidade de comunicação: é o enclausuramento no eu, denominado por Vicente de “má solidão” (pag. 177).

Há um perigo inerente ao contato intersubjetivo. Reside no poder de dissolução da interioridade presente nas relações. A exposição do eu no contato com o outro fragmenta-o, mas se há um caminho à construção do eu, esse é exatamente o ser-com-o-outro. O paradoxo se apresenta uma vez mais: o ser-si-mesmo somente alcança suas ricas possibilidades abrindo-se ao outro. Assim, nesse jogo de subjetividades, o outro pode representar tanto ameaça quanto libertação.

O OUTRO

A problemática das consciências exige que se pondere além da relação do eu e tu a própria realidade do outro tomando o eu como ponto de partida. Pensava-se que a simples constatação da existência do eu implicaria na conclusão da realidade do outro, no entanto, o outro como representação do eu “pode ser arrastado na dúvida e na suspensão fenomenológica” culminando no já conhecido solipsismo. A presença do outro se configura como transcendente ao conjunto total de minhas experiências, por isso ela tem valor de hipótese, somente servindo de organizadora de um setor cognitivo e atribuindo a existência do outro ao campo da ficção. A representação cognitiva não é suficiente para fazer a ponte entre duas consciências. Sem esquecer que o outro além de elemento de meu próprio mundo é agente de uma outra singular perspectiva a respeito desse mundo. A natureza dessa experiência, que assegura a presença do outro transcendente, e ao mesmo tempo imanente ao meu mundo, é diversa de um ponderar intelectual. A ação que efetuo é distinta do conhecimento e contém o agir de outras consciências. Cada ação é concebida no universo das ações das várias consciências, sendo que, na percepção de uma, se dá inevitavelmente o conhecimento das outras, as quais são condição para que me dê conta das minhas próprias ações.

O inventário de experiências com as quais acesso as objetivações das ações alheias é subjetivo. Eis o motivo de eu ser capaz de compreender as diversas concretizações que se me apresentam como, por exemplo, uma pintura ou escultura. A ação nos lança num complexo de instrumentos e objetivos entre os quais fazemos desenvolver nossa liberdade. Só há possibilidade de compreensão do que está fora de nós porque recriamos internamente os entes. Reconhecemos o outro no contato propiciado na ação e na intermediação com os objetos produzidos pelo agir. Assim é que o conhecimento do outro supera o mero juízo intelectual.

Um elemento a mais importante no conhecimento do outro é o querer. A aparição do outro é resultado de uma autonomia volitiva que alcança algo independente dela. A partir daí, as imagens que guardamos do mundo são consolidadas por nossa vontade em “obrigações e conexões fixas” (pag. 181). A explicitação da exterioridade dos entes é produto de juízos morais, não racionais.

Chegamos à idéia de independência do espírito tanto mais forte quanto se nega a independência dos objetos para reduzi-los a criação do por-si. Porém, esse impulso de autonomia criativa somente encontra plenitude quando exercido sobre outra consciência. O pensamento aparece posteriormente às atitudes volitivas, de forma que o outro torna possível o cogito, e não o contrário. Nesse ponto a tese hegeliana é digna de nota, segundo Vicente. Essa primeira conexão prática definirá as seguintes ponderações. A dinâmica de construção de uma consciência como um “senhor” se processa partindo do certame perigoso e indefinido da oposição que forja no instante refletivo sua autonomia existencial. Seguindo esse passo, manifestam-se paralelamente a consciência e o conhecimento de outro enquanto “escravo” dependente do “senhor”.

Estamos, como disse Heidegger acertadamente na visão do autor, originalmente num encontro com o outro. A presença de outra consciência não é um acidente, senão o momento sempre presente em que nos apresentamos ao mundo e do qual não podemos nos distanciar. O significado da conjunção expressa no “estar com” denota uma estrutura existencial inescapável que inflige na conexão interconsciencial um caráter ontológico. O momento da existência é mundo compartilhado assim como a existência é sempre co-existência. E no mundo há mais que coisas objetivas, copresenças, que em seu ser-com-o-outro independente de nossa vivência experiencial determinam existencialmente a vida mesmo quando na prática a conjunção passe despercebida, como diz Heidegger. Ainda que Dasein esteja sozinho, conserva a original ligação com e abertura para o outro, e o afastamento se mostra situação deficitária, mas que em nada altera a estrutura do Mitsein. O ambiente de irrupção de nossas potencialidades do ser-com-o-outro é o mundo compartilhado. O que revela que numa consciência incapaz de comunicação, a compreensão que pode atingir de si e dos demais é fatalmente prejudicada pelo único viés ao qual tem acesso: o seu modo de ser. O impulso comunicativo em constante mutação é perfeitamente ilustrado no fenômeno da linguagem e outras expressões de comunicação. O conteúdo originário é sempre inconformado às tentativas de codificá-lo, nunca se expressa como de fato o é pela insuficiência dos meios de expressão, segundo expõe Jaspers. A incongruência entre a interioridade e a exterioridade humanas revela a fraqueza, mas também grandeza da nossa liberdade.

Martin Buber nos fala da linguagem como lembrança de uma comunicação que não se baseia na completa correspondência entre as palavras e as coisas, mas abre portas para as relações dos espíritos. Aí, o silêncio é parte relevante de significado e pode superar em densidade o falatório demasiado no mais das vezes carente de verdadeira abertura ao diálogo. Pode comportar grande expressividade, a despeito de sua freqüente ligação com não-atividade. Mas a palavra não está apenas no registro ôntico, como no discurso científico; ela representando o grau de meu ser-para-o-outro como o era originariamente (aqui o autor faz alusão aos momentos primeiros de surgimento da espécie humana no mundo), expressa relação interconsciencial, observada numa solicitação, exigência ou apelo. Essa linguagem é mais vivida existencialmente que usada por nós, e seus termos são criados no momento comunicativo, não preexistem antes de seu uso criativo na relação intersubjetiva. A poesia mostra eficazmente a força da linguagem não degradada pelo dia-a-dia.

Pretende-se chegar por essas considerações semânticas ao tipo original comunicativo, que, segundo o que foi exposto, demonstra ser a experiência do outro. Superamos pela dialética intersubjetiva a equívoca noção “coisificada” do ser, também a infrutífera conexão teorética sujeito-objeto, por meio das existências dinâmicas que nos abrem a dimensão transcendente chamada outro. Apenas superando o solipsismo e mantendo a análise no campo da razão prática é possível adentrar à experiência do outro, lembrando Fichte.

O RECONHECIMENTO

Desse ponto a seguir a abordagem segue à procura dos momentos vitais de relevância para virtualidades substanciais. O reconhecimento a que se tentará compreender se identifica com a subjetividade que absorve seu lado transcendente a si mesma. Dessa forma, o não-ser-si-mesmo é não-verdade, alienação nas maneiras degeneradas da existência. Os estudos de Gabriel Marcel nos são úteis na compreensão dessa problemática ao introduzir a idéia de função na sociedade. Há uma inclinação a pensar o outro e a si mesmo sobre a égide de desempenhos: paternidade, cidadania, profissão, etc. Tal redução fisiológica imprime pobreza ao conceber o mundo sob unicamente objetividade.

Outros autores, entre eles Berdiaeff e Jaspers colaboraram na análise da origem da falta de substância da sociedade contemporânea a Vicente. O modo de ser de um ente natural que é igual a si mesmo é verdadeiro, porque sua não-verdade é externa a si. A única opção em que uma pedra não seria ela mesma é na consciência de um expectador. No ser humano, diferentemente, coexistem simultaneamente a verdade e a não-verdade paradoxalmente nos limites de sua realidade. Podemos negar, a despeito do que experimentamos no pathos existencial, e iludir nossa percepção concebendo situação diversa da que nos encontramos experiencialmente utilizando-nos da má-fé. Tal heteromorfose se constitui o corolário do processo do reconhecimento ao se projetar conformar o em-si no para-si. Procurando superar a imagem objetiva que o outro criou de nós, pretendemos recuperar no além da objetividade o que somos subjetivamente. Em nós, o que anseia por reconhecimento é nosso ser como negatividade, como liberdade, transcendência.

Dialeticamente ao movimento de reconhecimento, deparamo-nos com o processo do não-reconhecimento que assegura a afirmação subjetiva do por-si, que surgindo no âmbito de outras consciências cinge-se de alteridade que espera ser transcendida; o por-si é o processo de transcendência do ser objetivado no outro, que surgindo concomitantemente ao eu configura o ser-com-o-outro, e este em sua alteridade objetivante produtora do não-reconhecimento original das consciências constitui a gênese da dialética das subjetividades.

FORMAS DO RECONHECIMENTO

Até aqui pontuou-se a relevância da presença humana na análise dialética das consciências. E a irrupção dessa presença revela-se no decorrer histórico dos fatos de forma tão ativa que Lavelle credita o sentido espiritual da história à ocupação da consciência sobre o mundo dos entes, à busca de autenticidade e verdadeiro estar do espírito no mundo. Uma vez mais, é mister pontuar o atrito conflituoso formador da realidade existencial que configura a verdade mesma como vida centrada em si própria.

Hegel tenta demonstrar o intercurso de afirmação da consciência servindo-se do amor como impulso unificador que postulando sempre o não-ser de um ente caminha para o seu desenrolar apesar de pressupor seu contrário. No entanto, deixou de lado essa via por recear que o reconhecimento derivado do amor só se estendesse ao plano pessoal. Assim, posteriormente percorre dando ênfase exclusiva à luta e ao trabalho como motores da emergência e patenteação pessoais. Porém, vislumbrando um conceito de conexão interconsciencial mais amplo, é possível perceber que luta e trabalho são apenas opções dentro do espectro de emergências possíveis da consciência. E há que se concordar que a competição exerce um papel relevante no desenvolvimento das culturas enquanto impulso de perfeição e beleza, e de forma semelhante, a pulsão festiva promove dinamismo e vontade de viver. Hegel chega a dizer que somente nas experiências limites de perigo da própria vida e busca de superioridade é que temos oportunidade para criar. Porém, vários estudos demonstraram que a disputa não ocupa sempre o mesmo espaço que vemos na cultura ocidental. Atividades declaradamente religiosas, artísticas, jurídicas, políticas, filosóficas, etc., sempre contêm algo de lúdico e relacionado ao jogo nos princípios de cada cultura. Pretendemos demonstrar o papel da ação lúdica no assentamento da presença subjetiva. O jogo ultrapassa a designação de portador de abundância, de estímulo de autoafirmação, e nele o ser humano não se deixa ser determinado. O jogo lida e apresenta os espaços e aberturas com os quais se poderá trabalhar livremente na transcendência de suas formas figurativas. A essa fantasia, que expõe inumeráveis situações em que executamos nossas ações, chamamos de atividade lúdica.


David Wilkerson Almeida