quarta-feira, 20 de julho de 2011

A Harmonia Pré-Estabelecida e o Inatismo em Leibniz

O problema a que Leibniz se dedica nos Novos Ensaios, apoiado sobre a obra de Locke com o mesmo título, diz respeito à tentativa de encontrar o caminho que possibilite a afirmação do inatismo, entendido por este autor como a impressão de “princípios de várias noções e doutrinas” (pág. 8, prefácio), feita por Deus, inerentes a alma humana e pertencentes a qualquer um, mesmo que impercebidos, sob a forma de hábitos e aptidões (Novos Ensaios, Livro I, § 26), noções que, obrigatoriamente, são verdadeiras. Tal projeto é levado a termo sobre uma elaborada construção metafísica desenvolvida por toda sua obra que fundamenta as pretenções de inatismo: a doutrina das mônadas ou monadologia.
Leibniz acompanha uma tendência de sua época que possuía precedentes desde Pitágoras, quem falou primeiramente de uma πρώτη μονάς (primeira unidade, mônada). Lá, a mônada era entendida como “a unidade fundamental e última da qual se derivam os números” . Já em começos da Idade Moderna, o conceito de mônada adquire um sentido filosófico central no pensamento de autores como Henry More, Giordano Bruno e Nicolás de Cusa, segundo o qual “tudo está em tudo”, conforme atribuía este princípio a Anaxágoras. Porém, foi apenas Leibniz (1646-1716) quem desenvolveu uma completa metafísica monadológica. Seu projeto aglutinou tendências históricas num esforço de integrar o mecanicismo cartesiano com o que se chama “panespiritualismo”.
Dali tentaria, auxiliado pelo conceito de mônada, fazer convergir a ideia de individualidade à de continuidade e assinalar que “nada pode haver de real na Natureza senão as substâncias simples e os agregados que resultam delas” . Os compostos, ou corpos, são pluralidades, e as substâncias - vidas, almas e espíritos - são unidades. “A Mônada... não é senão uma substância simples, que entra nos compostos. Simples, quer dizer, sem partes” (Teodicéia, § 10). A ausência de partes pede necessariamente a inexistência de extensão, figura ou divisibilidade, bem como, de nascimento ou extinção. As mônadas são os “átomos” da natureza, as quais perdurarão tanto quanto o universo, que se transforma, mas não é destruído. As mônadas são individuais e distintas entre si e por, naturalmente, apresentarem mudança (que é sempre contínua), visto que todo ser criado está sujeito à mudança, esta é fruto de um princípio interno das mônadas, pois uma causa externa não é capaz de afetar seu interior. Além disso, é exigido que na mudança continue a haver algo que se mantenha inalterado para que a multiplicidade dos vários estados graduais seja percebida enquanto tal, assim a unidade é encontrada no múltiplo das mudanças ocorrentes em uma mônada, “alguma coisa sempre muda e outra sempre permanece” (Monadologia, § 13). É a esse estado transitório de multiplicidade na unidade que se denomina Percepção,e a atividade do princípio interno responsável pela mudança de uma a outra percepção se chama Apercepção ou consciência de percepção. Às mônadas que são apenas substâncias simples, Leibniz também as denomina de Enteléquias; àquelas que são acompanhadas por memória e sentimento, chama-as de Almas. A totalidade das mônadas constitui uma hierarquia de seres que ascende das representações mais obscuras e inconscientes às mais claras e distintas, indo até a mônada suprema: Deus. Elas não interagem mutuamente como os corpos físicos, mas cada uma é reflexo do conjunto.
E a lei que rege a interdependência das mônadas tem seu lugar na doutrina da Harmonia Pré-Estabelecida. Aqui Leibniz a coloca em relevo frente a duas outras teorias da causalidade: o influxo físico e o ocasionalismo. A primeira diz haver um influxo (a ação exercida por algo incorpóreo sobre o corpóreo) entre causa e efeito. A vibração de uma corda de violão, por exemplo, é explicado dessa forma como uma transferência do movimento dos dedos do violonista às cordas de seu instrumento.
O ocasionalismo substitui o conceito de causa pelo de ocasião. Considera que cada vez que se produz um movimento na alma Deus intervém para produzir um movimento correspondente no corpo e vice-versa. No exemplo dado das cordas, é Deus quem provoca sua vibração. Não há causalidade intersubstancial nem intrasubstancial.
Como o ocasionalismo, a teoria da harmonia pré-estabelecida defende que não há conexão causal intersubstancial entre substâncias finitas. A causa real da vibração das cordas do violão não é nem a mônada suprema: Deus, nem os dedos do tocador, mas a harmonia entre mente e corpo, que não se configura como uma relação causal direta.
A harmonia é a correta proporção, a unidade na multiplicidade ou a diversidade contrabalançada pela identidade. Deus é princípio de beleza e harmonia das coisas. Portanto, a harmonia é objeto natural de amor. Nessa teoria da concomitância ou hipótese dos acordos, todas as coisas e acontecimentos do cosmos conspiram em uníssono para o mais belo. Como diz Leibniz:
E assim como uma mesma cidade, observada de diferentes lados, parece outra e se multiplica em perspectivas, assim também ocorre que, pela quantidade infinita de substâncias simples, parece haver outros tantos universos diferentes, os quais não são, todavia, senão perspectivas de um só, segundo os diferentes pontos de vista de cada Mônada.
A harmonia pregada por Leibniz tem quatro elementos principais: “(1) nenhuma mudança nos estados de uma substância criada é devido a uma outra substância criada (isto é, não há causalidade intersubstancial), (2) todos as mudanças nos estados de uma substância criada é devido a essa substância em si (ou seja, há causalidade intrasubstancial), (3) cada substância criada tem um "projeto" (isto é, um conceito completo ou lei de série) que lista todos os estados, e (4) cada "projeto" está em conformidade com os planos de todas as outras substâncias criadas (ou seja, cada um dos estados naturais de uma substância criada é coerente com todos os estados naturais de cada substância criada)” .
Chegamos, então, num ponto culminante da construção do inatismo leibniziano. A constituição do universo monadológico fruto das inumeráveis e distintas substâncias simples que carregam consigo desde sempre as leis ou projetos a si inerentes e que definem suas relações com todo o conjunto formador dos corpos compostos, a rigorosa e inescapável interdependência entre cada mônada, isto constitui a harmoniosa ordem e conjunto de pré-requisitos que fundamentam a pretensão de repetição dos fenômenos (a lei da continuidade) sob as mesmas circunstâncias, e conseqüente possibilidade de estabelecimento de padrões ou leis necessárias, ou em outros termos, a harmonia existente nas relações entre as mônadas – determinada pela mônada suprema - é a garantia de que há idéias, verdades manifestas como “inclinações, disposições, hábitos e virtualidades naturais” inatas no ser humano, pois sendo este construto monadológico, corpo produto das mônadas, está ele também sujeito às regras que regem as substâncias, e, sendo este o melhor dos mundos possíveis, o universo é tal que podemos encontrar nele a verdade, já que está pré-configurado ao nosso entendimento .
Assim, o que se possa encontrar de independente dos sentidos em cada alma humana originando-se na reflexão, que se exerce através da atenção concentrada, visto que somente pela atenção se alcança as noções inatas, já que as distrações do cotidiano são inumeráveis; o que é independente, mostra-se ser proveniente dos princípios inatos, na medida em que os elementos a priori do conhecimento, apesar de não prescindir dos sentidos, são dele independentes.

David Wilkerson

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