quarta-feira, 20 de julho de 2011

A Solução Naturalista de Hume para o Problema da Conexão Causal

Hume é muito conhecido por ser o autor que despertou a Kant de seu “sonho dogmático” . Tem sido considerado como um crítico do conhecimento, e sobretudo das noções de substância e causa. Desse ponto de vista, é visto como sucessor de Berkeley e de Locke e como aquele que levou ao extremo o empirismo inglês. Sua contribuição na Filosofia Moral é também de grande relevo, mas o ponto que será aqui discorrido se refere à sua crítica do princípio da causalidade.
É sabido que a tradição racionalista defendida dentre outros por Descartes e Leibniz possuía como pilar a noção de causalidade sem a qual nenhuma possibilidade de conhecimento necessário seria possível. Para estes autores o universo se comportava respeitando sempre a dualidade condicionante-condicionado, de forma que qualquer fenômeno possível seria um efeito de uma causa precedente.
A justificação da causalidade se construiu sobre três teorias principais: o ocasionalismo, o influxo físico e a harmonia pré-estabelecida. Todas estas, desdobramentos metafísicos da tentativa de fundamentação da relação que associava, por esta visão, a causa ao efeito. Intentou-se, dessa forma, elucidar metafisicamente o mecanismo intermediário responsável pela ação de um sobre outro. É aqui que Hume se insere revelando uma nova solução, desta vez, naturalista ao problema da causalidade.
Na sua obra Investigação Acerca do Entendimento Humano Hume inicia a partir da Seção II do livro seu discurso sobre o tema partindo da especulação sobre a origem das ideias. Aqui, faz uma distinção fundamental para o que se segue, distingue dois tipos de percepção (entendida por ele como a totalidade dos fatos mentais) de acordo com a vivacidade de cada uma: as menos fortes são as ideias ou pensamentos; as mais intensas são as impressões, que se manifestam quando amamos, odiamos ou desejamos. Dessa forma, as ideias são imagens fracas das impressões correspondentes, das quais são uma cópia.
Tais ideias são associadas umas às outras por três princípios, segundo Hume: de semelhança, contigüidade e causalidade:
Um quadro conduz naturalmente nossos pensamentos para o original [semelhança]; quando se menciona um apartamento de um edifício, naturalmente se introduz uma investigação ou uma conversa acerca dos outros [contigüidade]. E se pensamos acerca de um ferimento, quase não podemos furtar-nos a refletir sobre a dor que o acompanha [causalidade] .
E cada ideia é concatenada em um dos princípios de forma a alcançar um objetivo eficaz; não se pensa sem um propósito em vista. Assim, a unidade é uma característica essencial da associação de idéias. Isso é bastante claro numa comédia, tragédia, peça de teatro ou na narração histórica. Ademais, os objetos da razão pertencem a duas categorias de relações: as de ideias e de fatos. As primeiras são exploradas pela geometria, aritmética e álgebra, pois as tais ciências quantitativas são capazes de garantir um alto grau de certeza mesmo em raciocínios complexos. Os fatos, no que se refere à possibilidade de conhecimento, abrem espaço a seu contrário, e a certeza de sua veracidade é sempre inferior à certeza que se tem na relação entre ideias. A garantia de certeza na defrontação com os fatos, que não estão no alcance do registro da memória ou no escopo do testemunho atual dos sentidos “parecem fundar-se na relação de causa e efeito” . Os dados atuais dos sentidos e da memória somente podem ser ultrapassados através dessa relação. Os raciocínios sobre os fatos são construídos com outros fatos, que imprimem causalidade ao raciocínio, pois sempre se supõe que um fato precedente se comporta como causa do posterior. Mas, como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito?
O autor diz que o conhecimento desta relação não provém de um raciocínio a priori, “porém, nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão constantemente conjuntados entre si” . Caso uma pessoa totalmente desprovida de experiência, mas dotada de suficiente discernimento fosse colocada frente a um objeto qualquer, este não seria de modo algum inferido por esta pessoa como resultante de tal ou qual causa, pois nenhum objeto revela, segundo o que aparece aos sentidos, as causas que o produziram, nem tampouco os efeitos que advém a partir dele. Muito menos é a razão capaz de, desamparada pela experiência, inferir qualquer relação. As causas e os efeitos não são descobertos por ela, mas pela experiência. O espírito não pode fazer nada, senão uma criação arbitrária dos supostos efeitos que um objeto desencadearia se estiver alheio à experiência. “Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto dela.” Qualquer juízo a priori que se poste numa tentativa de descobrir qual efeito é mais plausível que um outro, renunciando obviamente para isto a experiência, não pode encontrar nenhuma razão para a solução escolhida. Resumindo nas palavras do autor: “todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori” . E, mesmo a ligação do efeito à causa não se situaria além do arbitrário, pois uma razão é tão aceitável quanto qualquer outra.
Esse ponto é crucial para a conclusão do raciocínio de Hume. É aqui onde percebemos que os segredos de justificação últimos para nossas inferências sobre os objetos nos são “escondidos” pela natureza, e o maior esforço que se faça apenas revela que as experiências passadas presenciadas pelos sentidos e guardadas na memória só nos fazem sentido porque fazemos analogias e presumimos que a causa acontecida antes naquelas condições voltará a produzir os mesmos efeitos novamente. A vivência passada é capaz de oferecer apenas uma informação direta e segura acerca dos objetos aos quais teve acesso num período determinado e findo. Surge então uma questão fulcral: Por que essa experiência deve ser ampliada para o futuro e recair sobre novos objetos, mesmo que semelhantes em aspecto? Se experimento um objeto que é seguido de tal efeito, não revela-se daí que outros objetos àquele semelhantes produzirão o mesmo efeito. Requer-se descobrir o “termo médio” que autorize a passagem à inferência.
Lembrando que estamos lidando com questões de fato e de existência real, é preciso encontrar o processo do entendimento que responda pelo procurado. Mas, como já foi explorado e discorrido, as questões de fato se fundamentam na experiência, portanto não podem aceitar outra justificação que não relacionada a ela. E, se é à experiência que vamos recorrer, é mister ponderar por que nas nossas conclusões ela é sempre manejada em conjunto; ou, por que o resultado de uma experiência apenas é diverso daquele encontrado em várias experiências, mesmo idênticas. E ainda, em que se justifica a inferência de conexão entre as “qualidades sensíveis de um objeto e seus poderes ocultos” . Não há nada que impeça que o curso da natureza simplesmente mude e os efeitos antes produzidos por tais qualidades sensíveis já não sejam mais os mesmos, ainda que essas qualidades permaneçam como outrora.
Chegamos então ao corolário da investigação. O único princípio que assegura legitimidade à inferência é “o hábito e não a razão que nos determina a fazer [da experiência] a norma de nossos juízos futuros” . Sempre que um ato ou uma operação é produzida sem o auxílio de nenhum raciocínio, e sendo esta operação efetuada concomitantemente com a criação de uma propensão a se repetir, dizemos que ela é resultado do costume. O costume é o último princípio do qual sabemos, que responde pelas nossas conclusões retiradas da experiência. O aparecimento de um efeito, ou a conjunção entre causa e efeito é gerada pelo hábito. Somente assim podemos explicar por que é necessário um número grande de casos de uma mesma experiência para se chegar à inferência causal, quando aquele mesmo caso visto apenas uma vez não permite a conjunção. A razão é incapaz de fazer uma tal variação quantitativa, as mesmas conclusões que pode abstrair de um círculo são as que extrairá de mil círculos como o primeiro.
Dessa forma, é o hábito quem possibilita o uso da experiência enquanto material útil à vida e ele estabelece as condições para a expectativa quanto ao futuro. A sua ausência acarretaria a perda de todo material distante da memória e dos sentidos, a incapacidade de fazer projetos. “Seria, ao mesmo tempo, o fim de toda ação como também de quase toda especulação” .
Assim Hume estabelece uma nova e original solução naturalista ao problema da inferência causal.

David Wilkerson

A Harmonia Pré-Estabelecida e o Inatismo em Leibniz

O problema a que Leibniz se dedica nos Novos Ensaios, apoiado sobre a obra de Locke com o mesmo título, diz respeito à tentativa de encontrar o caminho que possibilite a afirmação do inatismo, entendido por este autor como a impressão de “princípios de várias noções e doutrinas” (pág. 8, prefácio), feita por Deus, inerentes a alma humana e pertencentes a qualquer um, mesmo que impercebidos, sob a forma de hábitos e aptidões (Novos Ensaios, Livro I, § 26), noções que, obrigatoriamente, são verdadeiras. Tal projeto é levado a termo sobre uma elaborada construção metafísica desenvolvida por toda sua obra que fundamenta as pretenções de inatismo: a doutrina das mônadas ou monadologia.
Leibniz acompanha uma tendência de sua época que possuía precedentes desde Pitágoras, quem falou primeiramente de uma πρώτη μονάς (primeira unidade, mônada). Lá, a mônada era entendida como “a unidade fundamental e última da qual se derivam os números” . Já em começos da Idade Moderna, o conceito de mônada adquire um sentido filosófico central no pensamento de autores como Henry More, Giordano Bruno e Nicolás de Cusa, segundo o qual “tudo está em tudo”, conforme atribuía este princípio a Anaxágoras. Porém, foi apenas Leibniz (1646-1716) quem desenvolveu uma completa metafísica monadológica. Seu projeto aglutinou tendências históricas num esforço de integrar o mecanicismo cartesiano com o que se chama “panespiritualismo”.
Dali tentaria, auxiliado pelo conceito de mônada, fazer convergir a ideia de individualidade à de continuidade e assinalar que “nada pode haver de real na Natureza senão as substâncias simples e os agregados que resultam delas” . Os compostos, ou corpos, são pluralidades, e as substâncias - vidas, almas e espíritos - são unidades. “A Mônada... não é senão uma substância simples, que entra nos compostos. Simples, quer dizer, sem partes” (Teodicéia, § 10). A ausência de partes pede necessariamente a inexistência de extensão, figura ou divisibilidade, bem como, de nascimento ou extinção. As mônadas são os “átomos” da natureza, as quais perdurarão tanto quanto o universo, que se transforma, mas não é destruído. As mônadas são individuais e distintas entre si e por, naturalmente, apresentarem mudança (que é sempre contínua), visto que todo ser criado está sujeito à mudança, esta é fruto de um princípio interno das mônadas, pois uma causa externa não é capaz de afetar seu interior. Além disso, é exigido que na mudança continue a haver algo que se mantenha inalterado para que a multiplicidade dos vários estados graduais seja percebida enquanto tal, assim a unidade é encontrada no múltiplo das mudanças ocorrentes em uma mônada, “alguma coisa sempre muda e outra sempre permanece” (Monadologia, § 13). É a esse estado transitório de multiplicidade na unidade que se denomina Percepção,e a atividade do princípio interno responsável pela mudança de uma a outra percepção se chama Apercepção ou consciência de percepção. Às mônadas que são apenas substâncias simples, Leibniz também as denomina de Enteléquias; àquelas que são acompanhadas por memória e sentimento, chama-as de Almas. A totalidade das mônadas constitui uma hierarquia de seres que ascende das representações mais obscuras e inconscientes às mais claras e distintas, indo até a mônada suprema: Deus. Elas não interagem mutuamente como os corpos físicos, mas cada uma é reflexo do conjunto.
E a lei que rege a interdependência das mônadas tem seu lugar na doutrina da Harmonia Pré-Estabelecida. Aqui Leibniz a coloca em relevo frente a duas outras teorias da causalidade: o influxo físico e o ocasionalismo. A primeira diz haver um influxo (a ação exercida por algo incorpóreo sobre o corpóreo) entre causa e efeito. A vibração de uma corda de violão, por exemplo, é explicado dessa forma como uma transferência do movimento dos dedos do violonista às cordas de seu instrumento.
O ocasionalismo substitui o conceito de causa pelo de ocasião. Considera que cada vez que se produz um movimento na alma Deus intervém para produzir um movimento correspondente no corpo e vice-versa. No exemplo dado das cordas, é Deus quem provoca sua vibração. Não há causalidade intersubstancial nem intrasubstancial.
Como o ocasionalismo, a teoria da harmonia pré-estabelecida defende que não há conexão causal intersubstancial entre substâncias finitas. A causa real da vibração das cordas do violão não é nem a mônada suprema: Deus, nem os dedos do tocador, mas a harmonia entre mente e corpo, que não se configura como uma relação causal direta.
A harmonia é a correta proporção, a unidade na multiplicidade ou a diversidade contrabalançada pela identidade. Deus é princípio de beleza e harmonia das coisas. Portanto, a harmonia é objeto natural de amor. Nessa teoria da concomitância ou hipótese dos acordos, todas as coisas e acontecimentos do cosmos conspiram em uníssono para o mais belo. Como diz Leibniz:
E assim como uma mesma cidade, observada de diferentes lados, parece outra e se multiplica em perspectivas, assim também ocorre que, pela quantidade infinita de substâncias simples, parece haver outros tantos universos diferentes, os quais não são, todavia, senão perspectivas de um só, segundo os diferentes pontos de vista de cada Mônada.
A harmonia pregada por Leibniz tem quatro elementos principais: “(1) nenhuma mudança nos estados de uma substância criada é devido a uma outra substância criada (isto é, não há causalidade intersubstancial), (2) todos as mudanças nos estados de uma substância criada é devido a essa substância em si (ou seja, há causalidade intrasubstancial), (3) cada substância criada tem um "projeto" (isto é, um conceito completo ou lei de série) que lista todos os estados, e (4) cada "projeto" está em conformidade com os planos de todas as outras substâncias criadas (ou seja, cada um dos estados naturais de uma substância criada é coerente com todos os estados naturais de cada substância criada)” .
Chegamos, então, num ponto culminante da construção do inatismo leibniziano. A constituição do universo monadológico fruto das inumeráveis e distintas substâncias simples que carregam consigo desde sempre as leis ou projetos a si inerentes e que definem suas relações com todo o conjunto formador dos corpos compostos, a rigorosa e inescapável interdependência entre cada mônada, isto constitui a harmoniosa ordem e conjunto de pré-requisitos que fundamentam a pretensão de repetição dos fenômenos (a lei da continuidade) sob as mesmas circunstâncias, e conseqüente possibilidade de estabelecimento de padrões ou leis necessárias, ou em outros termos, a harmonia existente nas relações entre as mônadas – determinada pela mônada suprema - é a garantia de que há idéias, verdades manifestas como “inclinações, disposições, hábitos e virtualidades naturais” inatas no ser humano, pois sendo este construto monadológico, corpo produto das mônadas, está ele também sujeito às regras que regem as substâncias, e, sendo este o melhor dos mundos possíveis, o universo é tal que podemos encontrar nele a verdade, já que está pré-configurado ao nosso entendimento .
Assim, o que se possa encontrar de independente dos sentidos em cada alma humana originando-se na reflexão, que se exerce através da atenção concentrada, visto que somente pela atenção se alcança as noções inatas, já que as distrações do cotidiano são inumeráveis; o que é independente, mostra-se ser proveniente dos princípios inatos, na medida em que os elementos a priori do conhecimento, apesar de não prescindir dos sentidos, são dele independentes.

David Wilkerson